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As quatro estações no outono telúrico de Sandra Maria

Publicado em : 14/02/2018

Nilson Jaime
Especial para o Jornal Opção

Ao lançar o outonal livro “Folhas Secas sob Meus Pés” (Cânone editorial, 2017, 187 páginas), no dia 6 de dezembro de 2017, a escritora e pianista Sandra Maria, nascida Sandra Maria Fontoura Queiroz, deixou de ser inédita e voltou a ser provinciana, num só ato. Sim, porque a bacharel em Letras (Português e Inglês) e em Piano, poliglota, pós-graduada em Literatura, com estudos complementares no Casper College (Wyoming), na Uni­versidade do Colorado e na Uni­versidade de Michigan, nos Estados Unidos, também em Cambridge (Inglaterra) e Saragoza (Espanha), é uma mulher universal. “Outonal” é o vocábulo que resume o livro, na “leitura” da psi­canalista e poetisa Cláudia Machado.

O retorno voluntário ao provincianismo deu-se porque a professora aposentada do ICHL, da UFG, quis cantar suas “origens” rememorando descender “…Do zebu de Uberaba / do cafezal de Conquista / da estrada de ferro de Sacramento / e do rebanho leiteiro de Campina Verde”. Segue a máxima de Tolstói, buscar a universalidade pintando a própria aldeia. E Sandra Maria descreve sua aldeia como ninguém.

Seus poemas remetem à sua formação de pianista e à música, em que melodia prescinde de pontuação, saltando de um verso para outro sem importar-se com métrica e rima. É o que ocorre com “À Sombra do Ipê-Amarelo”, poema bucólico em que a autora fala de vacas, chuva e capim, além da florida árvore do gênero “Handro­an­thus”: “na estrada da fazenda / Sem nome e sem placa / sem data”. [E sem pontuação, ao seu estilo].

A “mineira dos goyases” – como ela se define –, resgata escritos esparsos de uma vida inteira, esquecidos entre as páginas de livros; perdidos nas gavetas da escrivaninha; nos guardados do marido René, que olvida devolvê-los; nos esconderijos das filhas biológicas Thaís e Tainá, ou da filha do coração, Nayalla; ou nos papéis inventariados do pai, o professor, ex-reitor da UFG e escritor Jerônimo Geraldo de Queiroz.

Sapiência
O poema que nomina o livro – “Folhas Secas” – mostra uma mulher prestes a entrar no último quarto da vida, após viver um outono “balançando em ocre, cobre, / grená, caramelo… / ao som de um vento lento”. [Com pontuação]. A mulher decantada pela escritora, tal qual as folhas do outono do Cerrado goiano, não está seca, ao contrário do que comumente se imagina.

Para a autora, as “folhas secas” são figuras de mulheres viventes de mais um ciclo, transmutadas na natureza pela transformação da verde clorofila nas vermelhas antocianinas e carotenoides, à Van Gogh. Na vida humana, o viço da juventude dá lugar à sapiência acomodada sob as cãs. Idosas dão a impressão de que – como as folhas – secaram. Mas estão vivas, embora marcadas: “Cabelos brancos / […] em cada fio / uma dor / um dó” [In: “Passado em branco”].

Sandra Maria expressa a nostalgia “…dos sonhos de primaveras rosadas, / tão reais, antes, / mas no hoje cinzento, / meras quimeras…”. Cede às voluptuosas lembranças “do fogo de verões distantes, / dos abraços amantes / em bronze cálido, / das risadas sem causa”. A poetisa, por fim, se resigna com seu “inverno de nuvens”, onde “Os vestígios ferrugens / de verdes que plantei / enfeitarão a varanda de uma fazenda / em amarelo pálido”. Faz tudo isso em forma de indagação: “Será?”.

“Zzzzzzzzz”
Nos poemas de Sandra Maria, o leitor se depara com harmônicas onomatopeias: o “crec… crec / crec… crec” do “relógio antigo da sala”; os “corococós irritantes” das galinhas ante a “fúria descontrolada / da ventania sem rumo”; e o “zzzzzzzzz incessante / que enlouquece os ouvidos” da caixa de abelhas.

A menina-moça, a mulher em seu frescor, à Balzac (“…os seios macios…” e “…meu corpo de pluma…”), e a mu­lher-madura tiveram a curiosidade – tal qual Jean Fabre do Planalto Central – para deitar-se e apreciar “A Aranha” que “dependura / na linha / e sobe e desce / parecendo ioiô. […] Com mil braços e pernas / tece hábil a teia / em ângulos e triângulos / desiguais e unidos / em torno de um centro”.

O lado libertário da escritora é expresso em “Paredóns”, em que se insurge contra os “muros da vergonha” que separam povos (Israel/Pa­les­tina), irmãos (muro de Berlim e cercas minadas nas Coreias), po­bres e ricos (muro de Trump). Na mesma linha, o poema “Você? Eu Passo” é um libelo que cobra responsabilidades (“E a seca / a janta / a fome / Você notou?”) para a mudança (“E a paz / a guerra / o homem / Você votou?”).

Em “Meu Cerrado” aflora a ecologista: “Eu quero o meu cerrado torto / grosseiro. / Não que­ro o meu cerrado morto / eu o quero inteiro”. O poema “Me­nino-jornaleiro” é o drummondiano “A morte do Leiteiro” da poetisa. Como jornaleiro que fui, na minha infância em Palmeiras de Goiás, compreendo que só quem percebe “a mão suja de preto” dos “Jornaleiros-meninos / deste mundo cão” podem dizer: “Eu amo você”, sem parecer piegas.

Mas não só de “Vento”, “Pôr do Sol”, “Fim de Tarde”, “Trepa­deira” e “Pato do Mato”, num mundo ru­ral, consiste o poema de Sandra Ma­ria. A universalidade da poetisa se faz presente nas tulipas dos “Flower Fields e Keuke­nhof”, o jardim da Eu­ropa, e nos aleijumes da vida, “nos perdendo em becos e vielas / em túneis escuros / em águas profundas”, referência à “La Médita­tion”, de Auguste Rodin (1840-1917).

Para ouvir
Além das filhas, agraciadas em alguns poemas; do pai e da mãe, laureados em outros, o marido René Pompêo de Pina é homenageado em “Sonho Suor e Sucesso” [sem vírgula depois de sonho, conforme o estilo da poetisa]: “Conhecendo você, Centro-Oeste / Nos calos pioneiros de mãos corajosas / No ardor incansável de braços no trabalho…”. Não fica patente se é uma homenagem à Região Centro-Oeste ou um galanteio ao então superintendente da Sudeco, cargo que ocupou por seis anos, na década de 1980. Entretanto, não deixa dúvidas no poema “Você”, que vem a seguir: “Você / que pisa suavemente / para não es­magar os so­nhos / que espalhei a seus pés. // Você / que entende por que / eu fico com Sancho Pança / en­­quanto todos preferem D. Quixote”.

O livro é acompanhado de um audiobook, encartado no verso da contracapa – produzido para dar acesso à obra a deficientes visuais – gravado por profissionais como o professor e radialista Álvaro Catelan, pelo embaixador Lauro Moreira e pelo intérprete de poemas Francisco Paes.

Completa o rol de intérpretes a própria autora, seu marido René, suas filhas e alguns parentes e amigos. A “leitura-declamação” dos poemas contam com o fundo musical composto pela musicista e compositora Tainá Pompêo: “Darãn-gà” e “Folhas Secas”, presentes também em partituras, inseridas no livro.

Sérgio Buarque de Hollanda deu luz ao “homem cordial”. Sandra Maria revela a “mulher outonal”, batizada pela escritora Cláudia Machado. A alma do eu-lírico da poetisa “está como / um jogo de cristal / cheia de taças lascadas / copos trincados / transparentes, frágeis / tudo por um fio. / Um esbarrão / e tudo se estilhaça”. A escritora está viva! Vale a pena descobri-la.

Nilson Jaime, membro das Academias de Letras de Palmeiras (Apla) e de Pirenópolis (Aplam), é mestre e doutor em Agronomia e colaborador do Jornal Opção.

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